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Jornalista, casada e amante das palavras. A pernambucana mais brasiliense de todas.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Desfamília

Há quem chame de família Buscapé. Há quem apelide de família Trapo. Mas eu vou arriscar um neologismo da nossa língua. Se existe desamor, desafeto, desunião, por que não desfamília? Começo a me afeiçoar pela descoberta, embora soe desagradável aos nossos valores, ou desvalores. Talvez também caiba nesse novo dicionário desamoroso o desabraço, ou o desrespeito, opa, esse já existe. Com desdém, trato nossa língua, a exemplo de quem se trata e destrata em nossa desfamília. Palavras desconexas e mal recebidas. Silêncios desconfortáveis e ausências que parecem abismos. Desconto na língua portuguesa todo o desengano desumano e desleal. Toda a desalegria e toda a aparência. Por falar em aparência, elas já não enganam. Tudo o que parece é. As aparências foram desmascaradas. Rancores antigos, desentendimentos e desfrutes. Todos eles aparecem no topo da lista dos Dez mais. Ou seria Des mais? Ouso apresentar minhas queixas e meu pranto, a despeito do protocolo invísivel, tal qual a linha do Equador. Quanto me custará esse desplante? Serei eu deserdada? Mas essa verborragia está perto do fim. Mais que uma desiludida tentativa de dizer quem somos, direi quem não somos mais. Não somos mais amigos, isso quer dizer desamizade, porque inimizade soa muito forte. Não somos mais solidários, o que significa desinteresse. Cada um por si e nada além de si. Não somos mais engraçados, digo, a condição de desfamília deixa tudo sem graça. Desalmoços, desjantares, desaniversários, des-cinema em casa, des-War, des-pizza de frigideira, des-reveillons. Tudo perde o sentido se somos desobedientes à própria palavra de Deus: Honra pai e mãe... Decidi então fazer um desabafo despretensioso, porém desaforado. Enquanto não se olhar para os lados e enxergar com o coração; Enquanto não se chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram; Enquanto não se despir das vaidades e mais vaidades, afinal tudo é vaidade; Enquanto isso, desperdício de tempo é viver. Porque viver sem amor é desviver. Mais que isso, é desvanecer aos poucos, é desistir. É destruir qualquer possibilidade de se dar, de se importar, de juntar os cacos e formar de novo uma família de verdade, e de fato. Vivemos num tempo em que destroços podem ser reciclados, basta fazer uma coleta seletiva. Separar os sentimentos perecíveis e desprezíveis, dos sentimentos nobres e saudáveis. Reter o que é bom, essa é a receita, não de bolo, mas de convivência. E a convivência implica em muito mais do que conveniência. Ajudar quem precisa de ajuda pode ser inconveniente numa noite de sono, num sábado, numa tarde de sol ou de chuva. Mas convém fazer o bem, não importa a quem. Permitam-me a frase desoriginal. O que se vê por todo lado são guerras de egos, de emoções, de remorsos. Acabar com essa guerra fria e destrutiva e mudar esse destino desatinado depende de coisas como um sorriso sincero ou um ombro amigo. Depende de dar fim às murmurações e lugar às palavras que edificam. Depende de estender a mão, o teto, a cama, a comida, a quem não tem. Depende de afogar mágoas amarguradas e trazer à tona as delícias de uma grande família. Com defeitos comuns e toleráveis, mas que não ultrapassem o limiar de respeito e dignidade do outro. Que haja iniciativa dentro de cada coração, antes que a desfamília presencie uma despedida sem volta. Eis o desafio.

Escrevi este texto em 2008 e, de lá pra cá, quase nada mudou.

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